O marido participou de todo o processo, desde a escolha da equipe que me apoiou, a escolha do bercinho e das roupinhas, e cada segundo do parto, portanto nada mais natural que ele tivesse muito a relatar. E parece muita coisa, porque ele é escritor, mas vale cada palavra do meu amor.
Há
quem diga que uma mulher se torna mãe no instante em que engravida enquanto o
homem só é verdadeiramente pai quando a criança nasce. Não poderia discordar
mais. Tornei-me pai no dia que vi as duas riscas naquele teste de farmácia. Foi
um momento de emoções um tanto quanto baralhadas, mas algo era muito claro –
estava feliz. E assim permaneci por todos os meses que antecederam o dia 29 de janeiro.
O processo do nascimento se desencadeou na manhã de 28 de janeiro. Na véspera,
combinara com a Mi que iríamos acordar mais cedo – segundo os nossos padrões –
para comprar a última peça que nos faltava a fim de receber A., um adaptador
de mangueira para a torneira. Com o tocar do despertador, abri os olhos e mirei
uma Michele muito bem acordada, sentada na cama com um brilho nos olhos.
Perguntei se estava tudo bem e ela respondeu-me que sentia qualquer coisa de
diferente. Senti um frio na barriga e pedi que ela falasse mais. Estava
insegura se a nossa menina já vinha ou se era só um alarme falso, mas
confirmou-me estar acordada desde as 7 da manhã. Eu que nunca tive talento para
instintos não tive a menor dúvida, não tardava para termos um bebê a gritar em
casa! No café, confirmei se sentia à vontade para ir comigo ao shopping comprar
o adaptador ou se eu deveria ir sozinho. Ligou à doula, que lhe confrontou com
a possibilidade de serem as primeiras contrações e sugeriu um passeio na praia.
Mas seguimos com o plano de ir ao Parque Nascente. Por lá, compramos o tal
adaptador, almoçamos e ainda fizemos compras no Jumbo, incluindo pratos
congelados para facilitar a vida pós-parto. Do almoço em diante, sentia a Mi
diferente e vez ou outra ela soltava um gemido. Questionei se deveríamos pegar
um táxi correndo para casa, mas ela insistiu que não e voltamos de metro. Já
andava com alguma restrição e controlava cuidadosamente o tempo das contrações
com auxílio de um app – ah, a vida moderna! Dois prenúncios dos dias que nos
aguardavam – no mercado, a caixa comentou a barriga da Mi e perguntou o que
vinha pela frente (um bebê, oras). “É menina”, disse ela, para ouvir que ter um
filho era a melhor coisa do mundo “porque quando se chega em casa muito
cansado, eles salvam o nosso dia”. Na estação de metro, a futura mamãe
sentou-se ao lado de uma mulher com o seu filho de uns cinco anos. Ele estava
terminando de comer umas bolachas e estava completamente sujo. Sua mãe tinha
apenas um papel com o qual tentou limpá-lo. Eis que a Mi saca da bolsa um lenço
e lhe oferece – “Toma-o”. A senhora agradeceu e eu só conseguia pensar "A Mi
está se tornando mais mãe". Uma mãe linda. E quem conhece a minha Xu sabe
perfeitamente que ela não é dada a simpatias com estranhos em lugares públicos!
De
volta à casa, por volta das 16:30 hs, ficamos a aguardar pela doula. A Mi tinha
pedido que ela viesse ter com ela, mesmo que fosse apenas para uma massagem,
caso o processo de nascimento não
engrenasse – só ela achava que poderia não acontecer. A Marta (doula) chegou
por volta das 17 hs, como combinado, pronta para ficar o tempo necessário. Naquela
altura, eu estava a testar o adaptador de mangueira, com alguma dificuldade.
Quando a Marta apertou a campainha, eu tinha acabado de molhar tudo no corredor
dos quartos porque a mangueira havia escapado da torneira. Para o novo teste, a
Marta veio auxiliar-me, mas saiu de lá tão molhada quanto o chão! Achamos bem
que ela tratasse da massagem e, de seguida, o ajuste na torneira do banheiro
foi bem sucedido. Na sala, a Mi já tinha desistido da massagem e queria alguma
medida que a ajudasse a amenizar as sensações que estavam cada vez mais fortes.
Enquanto estava com a Marta, eu desci à florista realizar o último pedido de
A. – rosas rosas. No retorno, a Marta disse-me que já era tempo de acionar
as enfermeiras porque as contrações estavam com um espaçamento de 5 minutos,
tendo boa evolução. Ligamos à Sónia que acionou a Joana para vir primeiro, em
virtude do facto de morar mais perto de nós. Enquanto estava a caminho, comecei
a tratar da piscina. Já estava escuro. Ao inflar a piscina com a bomba de ar,
ficava a imaginar que logo mais haveria um bebê na nossa casa. A ansiedade de
ver o seu rostinho e tocar naquela pessoa concreta aumentou. Desastrado como
sou, não pluguei bem a bomba de ar na piscina que não enchia nunca e fazia um
barulho ensurdecedor. A doula veio ver o que se passava e julgou não estar tudo
direito por conta da demora. E claro que não estava. Voltamos a plugar e não
foram nem 10 minutos para ter tudo no sítio. Faltava a água, mas esta viria
mais tarde.
Quando
a Joana (enfermeira) chegou, a Mi estava a tomar banho. Eu tratava da roupa que
nossa filha usaria após a sua chegada. Separava ainda as toalhas, os
cobertores, travesseiros, roupão, enfim, uma série de coisas que poderiam ter
sido organizadas com calma, mas se assim tivesse corrido, não teria sido eu o
pai desta história! De saída do banho, a Mi foi examinada pela Joana que
apontou para os 5 cm de dilatação. Eram cerca de 8 horas da noite e parecia
certo, pra mim, que A. nascia antes da virada do dia. É uma notígrafa, como
o pai, pensei. Mas com o tempo percebi que palpites em processos de nascimento
não são das coisas melhores a se fazer. A Marta prosseguiu com o trabalho de
amenizar as sensações e eu aproveitei esta brecha para lavar a louça que se
encontrava acumulada na cozinha. Passado algum tempo, foi sugerido que
enchéssemos a banheira com água porque poderia estar próximo aquele momento tão
desejado. E esta é uma etapa bastante conturbada. Nosso quadro e plano
elétricos são antigos. A água da casa é aquecida a gás, via cilindro. Isso
significa que a água quente acaba em pouco tempo e que dois aparelhos de alta potência
não podem estar ligados ao mesmo tempo. Resultado? Um intenso aparato de
técnicas milenares para manter a temperatura da água a níves adequados. E era
preciso porque apesar de ter feito sol, o dia 28 foi tipicamnte de inverno.
Entretanto,
com tudo a acontecer à volta, liguei à fotógrafa, a personagem que completa o
cenário do nascimento de A. Como ela não atendeu, mandei-lhe mensagem a
informar que a parte ativa já havia começado e que era preciso estar atento.
Falei-lhe da dilatação a meio caminho e quando viu a minha sms, ela não
hesitou, veio direto à casa. Para ela, foi também uma noite bem longa – e fria.
Depois de algum trabalho com a Marta, a Mi veio estar comigo. Fomos ao quarto
por um tempo, conversamos. Disse-lhe que ela estava se saindo bem – e sei que
estava. Não sabia muito sobre partos, aliás, não sabia nada além desta embromation que vemos em novelas e
filmes – Hollywood, contrata eu! Minha mãe teve meus irmãos mais novos no
hospital e acostumei-me a vê-la sair de barriga – isto quando não estava a
dormir – e voltar com um bebê ao colo. A primeira coisa que me chamou a atenção
foi o facto de que as contrações, logo, as sensações, eram bem espaçadas
(conforme havia estudado durante a gravidez) e que sua intensidade se esvaia no
tempo entre uma e outra. Chega a ser engraçado porque num minuto a mulher está
conversando contigo como se fosse um dia qualquer e noutro parece que ela está
prestes a desintegrar com tamanha sensação. Foi mais ou menos assim que a Mi
recebeu a Brígida (a fotógrafa). Ao ver que lá estava deu um tchauzinho e lhe
disse “agora, não”! Passados alguns instantes foi à sala ter com ela, “Olá,
tudo bem?”, dois beijinhos. Que granda cena.
A
noite foi passando, as sensações cada vez mais constantes e fortes ficaram e a
Mi resolveu que queria ir para a banheira. Nesse momento, estava a acompanhá-la
de muito perto, às vezes, seguidos pela doula – sempre que a solicitamos. Houve
tempo para umas fotos com o pote de Nutella, que havia retornado à casa naquele
mesmo dia depois de uma greve forçada – por mim! Mas fora do nosso quarto, a
novela da água prosseguia. Com as luzes quase todas apagadas ou na menor
intensidade possível, a chaleira e as panelas a aquecerem água, formou-se
diante de mim um cenário um bocado medieval. Afinal, era assim no passado – sem
a chaleira elétrica, claro – pensava eu. A diferença é que as mulheres daquele
tempo eram assistidas por pessoas formadas na prática, no quotidiano, e nós
estávamos com profissionais preparadas para este momento. Na minha cabeça a
cena medieval insistia – e que bonito era. A mulher a permitir aflorar a sua
natureza que desabrochava ao ponto extremo, a nossa filha a sinalizar sua saída,
a sua mãe a assumir-se como única transição possível, a deixar-se guiar pelo
corpo, mas também pelos desejos e medos. Estivemos um tempo ainda deitados no
escuro do nosso quarto a esperar pela temperatura ideal. Em alguns momentos, as
sensações tomaram conta da Mi de tal forma que ela chegou a se exasperar.
Disse-me que não tinha sido boa ideia ter ficado em casa, mas eu sorri e lhe
disse o que sempre soube quando respeitei a decisão dela pelo parto domiciliar
– vai correr tudo bem e você está sendo impecável. A nossa doula veio ter
conosco mais uma vez, tratou de “resgatar o seu estado emocional”. Enfim, fomos
à agua.
Era
boa a temperatura, segundo a Mi. Era ainda maior a expectativa para mim. Na
água, as contrações pareciam ter efeitos mais amenos. A Mi conseguiu relaxar
mais um pouco, apesar de não parecer desligada de onde estava e com que estava
em momento algum. Algumas contrações mais fortes, um ou outro pequeno puxo, mas
não era tempo. O que parecia ser um parto muito rápido sinalizou mudança para
um tempo prolongado. A. ainda não estava pronta para vir. Ficamos cerca de
uma hora na banheira, fotógrafa a postos, enfermeira e doula a assistirem. A Mi
resolveu que precisava sair da água. A tarefa primordial da noite volta à cena
– manter a água aquecida para a próxima entrada. Chegamos ao dia 29 de janeiro,
eram cerca de 1 h da manhã quando deixamos o quarto do parto, hoje, o quarto da
A.
Aqui
começa o momento mais intenso de toda a recepção da nossa menina. Com
contrações muito menos espaçadas, o desgaste das horas e do tempo acordado –
lembremo-nos de que a Mi acordou às 7 da manhã do dia anterior – os limites
maternais começaram a ser testados. Houve novo momento de recusa por parte da
futura mamã das suas escolhas, “acho que substimei a dor”. Insisti que A. viria como ela sonhara e que até aquele instante ela portava-se incrivelmente.
Não havia com o que se preocupar. Com as sensações a manifestarem-se
intensamente, voltamos à sala. A Mi falava em vontade de puxar. Sentou-se no
sofá. A doula cuidava de confortar o corpo, eu tentava segurar o emocional e as
enfermeiras passaram a prepararem-se para um possível parto no sofá. Alguns
gritos, muita intensidade no ar, no sofá, no corpo. A casa era uma sintonia só.
Comigo mesmo, indagava que gracioso seria ver uma criança transgredir mundos em
pleno sofá, convenci-me novamente que ali conheceria a minha pequena, mas nada,
era só mais uma fase. Desgastada, a Mi preferiu ir ao quarto. Tentou dormir,
mas não era possível. Nova baixa emocional, novos apelos meus e da doula.
Aquele processo de nascimento passava a doer em mim. A estranha sensação de
incapacidade diante da vida, literalmente. Poderia eu fazer algo? Queria
compartilhar as contrações, apenas para vê-la bem. E a Mi estava bem, mas eu nem
sempre me convencia, ainda que lhe oferecesse sempre um olhar de aprovação, de
sucesso. Nesta etapa, o trabalho da doula teve o seu cume. A Marta foi
irrepreensível e quando a Mi hesitou ela lhe resgatou a confiança e a guiou de
volta para o seu caminho de encontro, de reencontro com A. Acho que foram
as horas mais longas da minha vida. A Mi pede para voltar à banheira.
Não
sei bem a que horas retornamos, o tempo enquanto registo era só um pormenor
agora. As mães é que entram numa nova dimensão no processo de nascimento, entretanto,
os pais, quando atentos, acabam por se perder útero afora. Nesta fase, eu já
estava muito cansado também, sentia fome, sono e os sentimentos andavam
agitados com a espera. Entre uma contração e outra, no escuro do quarto,
iluminado apenas por abajures, a pedido da Brígida devido à necessidade de um
mínimo de luz para as fotos, a Mi pediu
para que conversasse com ela. E eu estava tão conectado com outro lugar
qualquer, onde provavelmente procurava por A., que fiquei totalmente
perdido. Quer conversar? Han, ok, vamos lá. O que eu digo agora, pensava eu. Só
me apetecia lhe olhar e fazê-la sentir que estávamos juntos nisto e que daria
certo. Não havia espaço para criatividade e ousei falar de coisas que poderiam
ser engraçadas. Mencionei o pezão que a bebê teria, como havia previsto a
obstetra, se ela teria pés tão feios como o resto da família, etc. Mas a futura
mamãe sinalizou que era um tópico inapropriado “Você não está ajudando!”. Oops,
para onde vamos agora, indaguei-me. Ora, vamos por onde sei navegar melhor – o
mundo. E que tal as viagens que faremos. Será que A. nos acompanhará a
Budapeste? E que tal quando formos ao Rio dentro de alguns meses. Já estará
grande? Não deve ter sido a opção favorita da Mi, mas roubou-lhe um tempo de
exaustão até a próxima contração latente. A Marta entrou em cena para acudir-me
e, devagar, mas com segurança, fomos conduzidos à fase final.
As
cortinas estavam fechadas, luzes apagadas, mas se percebia a movimentação do
amanhecer lá fora. Foi uma fase de sensações intensas, muitos gritos e
preocupação zero com o mundo exterior. Tudo estava ali, acontecendo, evoluindo,
transgredindo. Depois de uma madrugada intacta, a bolsa finalmente rompeu na
água. A Mi preocupou-se com o tempo que tinha para estar ali e internamente eu
confesso que só pensava, por favor, mais dezessete horas, não! A nossa pequena
entendeu as vibrações, que certamente compartilhava com a sua mãe. A Sónia
arriscou dizer que ela chegava até às 8 hs da manhã – não sei a que horas fez a
menção, umas 7 e 30, talvez? Cansada, parecia que em alguns momentos a Mi não
respirava exatamente como era preciso, mas as intervenções da equipa foram
muito cuidadosas, sempre naquele tom “permita-se sentir”. Houve momentos de
mudança de posições na água, mas foi sentada, com os joelhos inclinados e a
cabeça reclinada para trás, ao meu encontro, que a Mi recebeu A. Num novo
momento tenso, alguém pediu que a mamãe sentisse com a mão a sua vagina. Já ali
estava a cabeça da nossa mais nova guerreira. Foi um momento bonito, animador e
um marco para que eu voltasse a acreditar que estava mais perto – porque sim,
às vezes, eu duvidei! O coração bateu mais forte, as contrações da Mi também o
ficaram, assim como os gritos. Na água, já se notava alguns cabelos a esvoaçar,
ainda que eu não tivesse clareza de que era mesmo a nossa menina. E o era. A
fotógrafa foi ficando mais focada, a Joana checava o coração do bebé entre um
puxo e outro, a Sónia preparou-se para filmar e a doula entoava o seu canto de
que tudo corria bem, enquanto eu segurava a mão da minha esposa com bastante
força – ou terá sido o contrário. Nesta etapa, também me veio à mente a eterna
comparação da mãe às leoas, um paralelismo, quiçá. A cada novo grito, percebia
que a Mi diante de mim não era a mesma Mi com quem me casei pouco mais de um
ano atrás. Não o era àquela da noite anterior. Estava ali à minha frente, uma
mãe, uma guerreira, uma guardiã. A. arriscou-se sair e o mundo se redimiu a
nos acompanhar. O tempo não parou, pelo contrário, transbordou. Ainda foram
alguns momentos. A Mi pedia que ela saísse, que alguém a retirasse, mas só a
bebê é que poderia encerrar o seu processo de nascimento. E o fez, alguns
minutos depois, quando já me escorriam as lágrimas e o coração era o meu corpo
todo. Nos braços da mãe, a menina mais linda de sempre hiponotizava a sua
progenitora. Juntos, acompanhamos os primeiros movimentos de A. e tudo o que
interessava era acolher aquela pequena criatura. A natureza em sua divindade
completava mais um ciclo, estava concluído o rito da passagem, eternizando em
nossa memória a alegria da vida. Frágil, delicada e intensa. É como diz o dito
popular, quando o amor não cabe, ele transborda. O detalhe final ficou por
conta do corte do cordão umbilical que eu acabei por fazer. Antes, tinha
dúvidas de que teria vontade, capacidade ou controle para tal. Ali, soou-me
como um passo natural, menos instrumental. Cortei então o cordão, não para
separar, mas para unir. Agora, somos 3. E juntos, cresceremos. Bem-vinda,
A.!